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quarta-feira, 26 de setembro de 2012

"BOSSA NOSSA"

BOSSA NOSSA - apresentação da Cia. Nós da Dança.
(Foto Margarida Castro)

CRÍTICA  DE DANÇA
Ida Vicenzia

"BOSSA NOSSA"
Cia. "Nós da Dança"
Regina Sauer

Interessante observar o trabalho coreográfico dos grupos de dança cariocas. A coreógrafa Regina Sauer, por exemplo, desde 1981, vem trabalhando com Dança Moderna e desenvolvendo uma pesquisa voltada para a cultura brasileira com o Nós da Dança (nome sugestivo, o da Companhia, com suas diversas interpretações, inclusive a da linguagem corporal e seus "nós", metafísicos e físicos! da vida dos bailarinos). Regina se aproxima das escolas de Alvin Ailey e de Martha Graham, cuja experiência absorveu em Nova Iorque. A "pitada nacional" fica por conta da adaptação de uma linguagem particular. Quem acompanha a trajetoria de Regina desde "Rio em Concert", seu primeiro espetáculo, em 1981, pode testemunhar essa preocupação da coreógrafa e bailarina.  
     O último a que assisti, "Bossa Nossa"(2012), com letra e música de Vinícius de Moraes e Tom, Jobim, é a fórmula perfeita para a atual linguagem de Regina: suavidade e poesia. Ficamos com a sensação de que a suavidade da coreógrafa assinala um hiato entre as agitadas coreografias de "Tchelolloco", do espetáculo "Ensaio Aberto", de 1982, por exemplo, e seu processo atual.      
      O cenário de "Bossa Nossa" é luz em foco sobre um fundo negro (desenho de luz de Luis Fernando Filipetto), em contraste com os leves figurinos brancos, ou de cenas praieiras (de Marcos Rogério), dando um clima romântico ao espetáculo. A seleção das músicas é de Danilo D'Ávila. Produção de Flavia Hargreaves e Helena Sauer. Direção e coreografia de Regina Sauer. O violão em cena é de Danilo D'Ávila, acompanhado da voz de Munique Mattos. A concepção é agradável de ver e ouvir. Regina, que parece moldar seus bailarinos para o cenário internacional (eles ganham o mundo, segundo a coreógrafa), tem o prazer de constatar que a grande maioria deles se mantém fiel, como é o caso de Patricia Ruel, Stella Maris, Adriana Salomão, Alan Rezende, e muitos outros, alguns há mais de vinte anos na Companhia.  
     Podemos dizer que "Bossa Nossa" é um "recital" em homenagem a Tom e Vinicius. Ele se inicia com o grupo de bailarinos sentado em volta do violonista e da cantora, entoando baixinho as músicas propostas por Danilo, como Águas de março, Felicidade, Insensatez e muitas outras. A plateia a tudo assiste e tem-se a impressão de que aquele momento é uma pausa nas questões do dia a dia, da política, dos problemas, para dedicar um momento à poesia e ao amor. No início do espetáculo, a bela voz de Munique, acompanhada do violão de Danilo, sublinha os diversos aspetos do sentimento amoroso e, pouco a pouco, os bailarinos se manifestam, em sua própria linguagem, desenhando passos de dança nas frases da música, como se estivessem improvisando. A principio eles se revezam, para colocar-se, novamente, na posição inicial, sentados no chão; novamente em círculo, como se estivessem na sala de sua casa, ouvindo música com os amigos. É algo muito especial. No som do espetáculo, a voz de Elis Regina, Tom Jobim, Nara Leão, e a próprio Vinicius, vão cantando os sucessos da bossa nova. Entre os que assistem ao espetáculo, uma sensação de paz, e um gostinho de quero mais.   

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

"O HOMEM TRAVESSEIRO"

Miguel Thiré, Ricardo Blat, Bruce Gomlewsky, Tonico Pereira em "O Homem Travesseiro" (foto Guga Melgar)




CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Sempre que alguém se lembra de montar o dramaturgo irlandês Martin McDonagh, no Brasil, tem como resultado um ótimo espetáculo, teatro puro, e, talvez por isso mesmo, enfrenta uma luta sem trégua para vê-lo reconhecido. Acontece que "O Homem Travesseiro", texto que vamos comentar agora, é dramaturgia bem trabalhada, tensa, e guarda, para seus intérpretes, a marca e o mistério do talento. São tantas as oportunidades de reconhecer essa marca, distribuída entre os atores, no presente espetáculo, que nos daremos ao luxo de, antes de começar a crítica, falar um pouco do "aquecimento" que nos levou ao texto de McDonagh. Trata-se de um espetáculo que está colado ao do diretor Bruce Gomlewsky, e que acontece aos sábados e domingos, no mesmo teatro Laura Alvim, algumas horas antes de McDonagh começar. Trata-se de um espetáculo infanto-juvenil, "Histórias do Medo", dirigido a um público que mais tarde descobrirá, se tiver sorte, Martin McDonagh. As histórias da contadora Priscila Camargo, com direção de Aracy Cardoso, são, provavelmente, saídas da pena dos irmãos Grimm, e têm como alvo as criancinhas, e muito em comum com as histórias de McDonagh. Elas também vivem no mundo da Literatura.  
     As modificações que Priscila consegue de seus pequenos ouvintes é um caso a parte. Porém, as reações dessas criancinhas são muito semelhantes às do irmão do escritor/personagem de McDonagh, o Michal, interpretado por Ricardo Blat. Perdão, mas o que posso dizer agora é que, dessa fábrica de Priscila saem os futuros apaixonados por histórias de ficção, histórias como as que ilustram a peça do dramaturgo irlandês, abstraindo, talvez, a obsessão de McDonagh pela figura materna. No final do século XX foi montado, no Brasil, "A Rainha da Beleza de Leenane" (região na qual o autor passou a infância), e é impressionante a presença materna, a obsessão que ronda, para sempre, a dramaturgia do irlandês, proporcionando-lhe impacto e prêmios: inclusive dois Tony, e um Laurence Olivier. Ele se diz influenciado por David Mamet.  Aí voltamos ao mistério do talento.   
     São quatro atores: Bruce Gomlewsky, no papel do escritor; Ricardo Blat, o irmão (cujo surgimento abre uma ruptura na história, esclarecendo-a); Miguel Thiré: o talentoso ator está irreconhecível como Ariel, o "aprendiz de detetive"; e Tonico Pereira, o delegado, dublé de escritor, que nos dá uma inesquecível aula de como se organiza uma história para contar. Aliás, preparar histórias e contá-las faz parte deste texto desafiador. No fundo, trata-se de uma homenagem do autor aos escritores, à sua sensibilidade e maneira de ver o mundo, transmitidas principalmente no embate entre Tupolski (Tonico Pereira) e Katurian (Bruce Gomlewsky). Uma homenagem meio torta, digamos, porém uma bela homenagem à literatura.      
     Quer o autor que o caso se passe em um país onde os métodos truculentos fazem parte de seu dia a dia. A história pode ser sufocante, entretanto, há vários momentos de  respiração. E citamos o caso de Tonico Pereira (só para falar em algum deles), um momento em que a música pára - a música imaginária, de horror, que os nossos ouvidos escutam, ao ritmo da fala dos atores - para ouvir "o solo do menino tolo e o trem que ameaça a sua vida". A maneira que o ator vai narrando a sua história, que parece ser inventada naquele momento, dá a dimensão da transfiguração do talento. O episódio vai se concretizando, e é Literatura. Fiquemos com este exemplo. Eles são muitos, e os mais variados conteúdos se alternam, dando espaço e expressão ao elenco. A imaginação de quem nos lê, e assiste ao espetáculo, complementa e dá a dimensão certa ao que acontece em cena.
     Direção sensível de Bruce Gomlewisky; Cenário Marcos Flaksman; Luz, de Luis Paulo Nenen e Thiago Mantovani; Figurinos, Rita Murtinho; Música Original, Borut Krzisnik. Há, no elenco, a sustentação dos papéis dos pais, feita por Ricardo Ventura e Glauce Gima, que também interpreta "Menina Jesus" - uma das histórias contadas. Julia Limp Lima é a "A Menina Muda" e Gabriel Abreu interpreta Katurian criança. Aconselho com veemência o comparecimento do público para assistir a esta peça. Trata-se de uma experiência emocionante.


sábado, 15 de setembro de 2012

"O DEUS DA CARNIFICINA"

Deborah Evelyn (Verônica), Julia Lemmertz (Annette), Orã Figueiredo (Michel) e Paulo Betti (Alain), em "O Deus da Carnificina", de Yasmina Rezza (foto Gulga Melgar)

CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial) 

     Ao som de "pour un peu d'opulance", tem início O DEUS DA CARNIFICINA, de Yasmina Reza, a peça mais procurada do 19º Porto Alegre em Cena, junto com o Berliner Ensemble, em sua primeira visita ao Brasil para apresentar a peça de Bertold Brecht, "Mãe Coragem". Os dois espetáculos, nem é preciso dizer, foram sucesso. Acompanhamos o deslocamento dos atores brasileiros que trabalham na peça de Yasmina Reza, do Rio de Janeiro até Porto Alegre, não só como crítica convidada, mas também como Organizadora do livro de poemas (e teatro), do pai de Julia Lemmertz, o ator Linneu Dias. Julia é uma das atrizes do LE DIEU DU CARNAGE (do original francês). A outra atriz do elenco é Deborah Evelyn. O Deus da carnificina é o homem, o ser humano.
     Mas agora comecemos pela verdadeira Via Crucis que é sair do Rio de Janeiro em um vôo da Gol, a Companhia de Aviação que mais atrasa, no Brasil. Para nós, dessa vez, foram três horas de atraso até conseguirmos chegar a Porto Alegre! Pela algaravia dos fãs, pedindo para serem fotografados ao lado das duas atrizes, suspeitamos que o atraso de vôo era caso pensado da Companhia, para dar uma alegria extra aos passageiros, que tiraram fotos, à vontade, das atrizes! Depois, ficamos sabendo que os atrasos são uma constante na Gol, o que nos fez preferir a Azul, em nosso retorno ao Rio, e ao aeroporto Santos Dumont, em detrimento do Tom Jobim, cujas condições são inviáveis.
     Mas passemos ao espetáculo. Não sem antes comemorar a beleza do neoclássico Theatro São Pedro, de Porto Alegre, uma jóia da arquitetura do final do século XIX, com capacidade para 700 pessoas (ficou lotado e com cadeiras extras, no espetáculo carioca). A primorosa  arquitetura  é muito bem protegida pela diretora Eva Sopher, responsável pela  restauração do teatro. No saguão podia-se encontrar a mesa com os livros do ator Linneu Dias, URBIA I e II, no qual encontramos críticas de cinema e o monólogo "Minh'Alma, Alma Minha", uma biografia poética do Linneu. A "banca", como o elenco da peça e os admiradores a chamavam, atraiu público e foi uma excelente demonstração do apego à cultura, feita pelos  gaúchos.   
     No início de peça, embalados por um hip hop francês (a trilha sonora é de Marcelo Alonso Neves, com música cantada por Maurício Baduh), os dois personagens-anfitriões, Verônica (Deborah Evelyn) e Michel (Orã Figueiredo), arrumam a sala de sua casa para receber o casal com quem terão uma delicada conversa sobre o comportamento de seus "guris" adolescentes. Durante os preparativos para receber as visitas, o diretor Emílio de Mello lança os primeiros dados, através do gestual estabelecido para os atores (trabalho compartilhado por Valéria Campos e sua Técnica de Alexander), dando as dicas para o público avaliar o caráter e o relacionamento do casal. Enquanto Verônica, a esposa delicada, prepara o ambiente doméstico de maneira cuidadosa, o não menos dedicado marido Michel vai revelando, pela sua movimentação, o homem rústico que é (note-se a maneira pela qual ele molha os dedos para virar as páginas dos livros de arte da esposa, são detalhes que constroem os personagens).
     O interessante, nesta direção de Emílio de Mello, é o que ele vai construindo, ajudado pelo excelente texto de Yasmina Rezza, os planos de uma narrativa cruel: o do público, que classifica as ações dos casais como "excentricidades", e o outro plano, o da verdadeira natureza do espetáculo, a complexidade do humano e a sua desagregação enquanto ser civilizado. Há uma tristeza profunda pairando sobre "a comédia". O subtítulo, "uma comédia irresponsável" é dado, imagino, para atenuar os acontecimentos.       
     E os "acontecimentos" se sucedem, estabelecendo o jogo de cena. O público se mobiliza, assistindo ao embate dos personagens e a dedicação dos atores: temos Paulo Betti, como Alain, o advogado sem escrúpulos; Deborah Evelyn é Verônica, a pesquisadora de mundos exóticos (estabelecendo o eterno complexo de culpa do mundo civilizado); Annette (Julia Lemmertz), é a implacável defensora dos deslizes de seu filho agressor, e crítica feroz do mundo que a cerca; Michel (Orã Figueiredo), o macho que conhece muito bem os seus limites, e teme ultrapassá-los.
     Mas não se pode esquematizar os personagens, neste embate tão contemporâneo. A peça é uma sucessão de fatos que acrescentam dados ao perfil ocidental: e é aí  que está a maestria da autora iraniana nascida em Paris. Yasmina Reza trafega por assuntos os mais variados, e a todos aborda com profundidade. A autora atinge o ponto preciso dessa profundidade quando presenteia Alain com a melhor frase da peça (o furor do personagem é interrompido, constantemente, pelos seus parceiros), quando Alain se refere à mesquinhez dos problemas caseiros que estão tratando, se comparados à situação caótica do mundo, na qual crianças muito menores do que seus filhos, matam, indiscriminadamente outros seres humanos: um mundo onde as armas estão ao alcance de suas mãos, "onde deveriam estar os pães de uma padaria", acrescento eu).
     Assisti diversas vezes a essa peça - e a cada apresentação - a frase de Paulo Betti (e a sua irônica interpretação, que lhe valeu uma indicação ao Prêmio Shell), está cada vez mais diluída. Essa frase, que lança um flash instantâneo sobre a carnificina atual. Até a palavra "carnificina" presente na frase, o ponto chave da peça, fica diluída pelo ruído ambiente, o que é uma pena. Ela colocaria a platéia, sequiosa por divertimento, diante de nossa miséria incontestável. Dessa última vez que assisti LE DIEU DU CARNAGE, a experiência foi interessante. Paulo Betti entrou na frase em um tom discursivo, dominante, o que impressionou o público. Para quem pensava que estava assistindo a uma comédia, foi uma tomada de consciência. Pena que foi um instante efêmero. Mas talvez seja assim mesmo a reação do ser humano a uma tomada de consciência, efêmera, ele prefere cortá-la logo, cortar os assuntos inconvenientes.
     E não há "assunto inconveniente" maior do que ver os cuidados excessivos do mundo ocidental com os seus pimpolhos (que, no caso, desfiguram uns aos outros em combates de rua), quando eles próprios (os adultos ocidentais) matam centenas de milhares de crianças, do mundo oriental, como se fossem poeira na areia. Além de considerar essa peça vital, diria essencial, folgo ao saber que ela está fazendo agora (já próximo às trezentas apresentações - estreou em 2010), o circuito do CEU, os Centros Educacionais Unificados de São Paulo, onde há alunos de todas as idades interessados em cultura, em teatro.
     Além dos já mencionados técnicos que compuseram o espetáculo, temos Flávio Graff com o seu cenário marcante: a mesa dominando a cena, como peças de armar de brinquedo infantil; e a iluminação feérica, dimensionada por pequenos núcleos, de Renato Machado; os acertados figurinos de Marilia Carneiro. Parabéns para a encenação dessa peça. É muito bom ver bom teatro!    
  

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

"A MORINGA QUEBRADA"

Luciana Fávero (D. Marta Rola) e Claudio Tovar (Juiz Adão) em "A Moringa Quebrada"
(Foto de Antonio Garcia)

IDA VICENZIA FLORES - CRITICA DE TEATRO
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

     A peça de Heinrich von Kleist, "A Moringa Quebrada",  estreou no Espaço NET, sala Paulo Pontes, com direção de Gustavo Paso. Em destaque: a volta aos palcos de Claudio Tovar. A farsa de von Kleist sobre as leis, vista por uma comunidade de camponeses alemães do século XIX, é transposta para os palcos brasileiros através de uma encenação no sertão nordestino (adaptação de Gustavo Paso), com tradução de Marcelo Backes.
     O Nordeste, seus costumes e a maneira de processá-los, poderia ser um recurso marcante (ambiciona o tom de farsa de Ariano Suassuna), não fosse o descompasso entre os atores: há, entre eles, profissionais de renome dando apoio a um grupo semi-amador. Calma! Essa observação justifica-se pela impostação de voz de alguns atores da Cia Teatro Epigenia, desconcentrando o público especializado e com isso diminuindo a probabilidade de acerto de ideia tão profícua. Embora a montagem se inspire na Literatura de Cordel, nada desculpa a falha vocal dos  atores que interpretam o Escrivão Luz (Thiago Detofol); Robério Cacimba (Felipe Miguel) e Margarida (Talita Vaz), papéis fundamentais no decorrer da trama. Aliás, em se tratando dessa adaptação da obra de Kleist (já vi outras), todos os papéis tornam-se fundamentais. Os atores Samir Murad (Conselheiro Magno), Luciana Fávero (D. Marta Rola); Barbara Werlang (Eva Rola); Antonio Barboza (Vito Cacimba), e principalmente Mônica Vilela (Sra. Roupapreta), salvam a montagem com suas  atuações. E, principalmente, Claudio Tovar, em magnífica interpretação do Juiz Adão (diga-se que a adaptação dos "ditos e maneirismos do Nordeste", feito por Gustavo Paso alimentou as falas desse ator). O lascivo Juiz alcança sutilezas que despertam um sorriso cúmplice em quem o assiste, principalmente nos momentos em que percebe que é o alvo das suspeitas do Conselheiro Magno (Samir Murad corresponde ao solicitado, em um papel cheio de nuances).
     O alucinado "Adão" tenta corromper a fiel "Eva", através de expedientes espúrios. A descoberta de sua "vilaneza" é o ponto alto do espetáculo. Não conseguimos desviar os olhos de Claudio Tovar, quando está em cena (e sempre o está). Tanto a sua expressão corporal, quanto a vocal, são impecáveis. O olhar, a desfaçatez e o espanto do Juiz Adão fazem reviver o grande personagem criado por Kleist. Esse papel já deu prêmio a atores nacionais, como o gaúcho Claudio Heeman, em 1961. O mundo é dos Claudios! E, segundo a lenda, dos diabos! Não há nada mais fascinante do que relembrar o papel do "pé de cabra" nas brenhas nordestinas. Neste sentido é marcante a participação de Mônica Vilela, como a Sra. Roupapreta, a caçadora de diabos!
     A versão brasileira de Heinrich von Kleist, criada por Gustavo Paso, nos leva a um Brasil arcaico, não muito longe da Alemanha recém saída da Idade Média, ilustrada pelo dramaturgo. O enfoque dado pelo diretor busca uma aproximação com o Brasil atual (corrupção, etc), mas fica somente no seu simulacro de um país "exótico". Ainda bem, simulacro, pois o que precisamos agora é justamente nos livrar da imagem do "exótico" que carregamos, e também a do país de corruptos.
     O local fictício da ação é em "Upa Cavalo" - um "sub-reino da Monarquia Parlamentarista dos Estados Federativos do Brasil" e, se tal local não existe, fica-se sempre livre de qualquer semelhança com os acontecimentos nacionais, embora o teatro seja uma lente de aumento nada ingênua. Mas que acontecimentos são esses, afinal? Um juiz corrupto, que não se importa com sua função e vive em um local onde não há nem Deus nem Lei, e tudo acontece conforme a sua gana e o seu descaso. Será essa a imagem do Brasil que queremos?
     Ficha técnica: Direção: Gustavo Paso; Assistência de Direção: Suzana Castelo; Adaptação: Marcelo Backes; Pesquisa popular, de ditos e maneirismo do Nordeste: Gustavo Passo; Cenário: Gustavo Paso e Teca Fischinski; Figurinos: Teca Fichinski (um caótico deliberado); Preparação Vocal: Dody (sua atuação pode ser aprimorada); Pesquisa Corporal Édio Nunes. Trilha Sonora (a desejar), de Luciana Fávero e Felipe Miguel; Letra de "Eu Quero" (com encenação final de despedida, em tom animado, cativante, trazendo à vida, inesperadamente, a filosofia de von Kleist!), de Gustavo Paso e Luciana Fávero. Assessoria de Imprensa, Ney Motta.                

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

"O CASAMENTO"

Guta Stresser (Glorinha), Nello Marrese (Antonio Carlos) e Carolina Helena  (Maria Inêz), em "O  Casamento", de Nelson Rodrigues
(foto Ana Paula Abreu)





CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da  Associação  Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)


     Perdi a apresentação de "O Casamento", em 1997. Nunca imaginei que iria assistir a essa adaptação do romance de Nelson Rodrigues com o seu elenco original. Nunca imaginei a estatura de comediante de João Fonseca, por exemplo (também não assisti "O Auto da Compadecida" (não estava no Rio), outro sucesso dos "Fodidos Privilegiados", o grupo. Quanta gente boa saiu dali! Ou já existia, e o grupo divulgou. A adaptação do romance, e a direção feita pelos dois artistas, Abujamra e Fonseca, deu no que deu: a comemoração dos 100 anos de vida do sempre atual, e vivo, Nelson Rodrigues, e o reconhecimento do Brasil a respeito de seu maior dramaturgo. Nelson é encenado pelo mundo, e isso é a  máxima glória para os nossos palcos, para nós, que temos complexo de cachorro vira-lata, não é mesmo?  Assim vai a vida. Nunca, neste país, um dramaturgo foi tão festejado. Ainda bem. E "O Casamento" foi uma das forças propulsoras, para a nossa juventude.           
     Pois não é que esse romance, que se transformou em peça de teatro graças a Abujamra e Fonseca, sintetiza o pensamento de Nelson? Está tudo lá, e não é do "teatro desagradável" que se trata, porém da comédia pura, centralizada na loucura dos homens. Nelson Rodrigues ri, apesar de ter sido atingido, no peito, pela tragédia. Ou serão as suas comédias um novo tipo de tragédia?
     Coroando essa história toda, temos o diretor que projetou Lilian Lemmertz e Glauce Rocha - Antonio Abujamra - criando, e selecionando, ator por ator, o seu grande elenco. E tudo deu tão certo que daí surgiu João Fonseca, ator e diretor. Alguns ficaram, nem todos. Houve outras surpresas (ao menos para mim) além de Fonseca. Nello Marrese, o cenógrafo. Pois não é que nunca o tinha visto em palco? Ele protagoniza Antonio Carlos, o filho do ginecologista Dr. Camarinha (interpretado por Thelmo Fernandes). Há também a surpresa de Carolina Helena no papel de Maria Inêz, a namoradinha apaixonada. Nelson Rodrigues entrou na cabeça das menininhas e escancarou essas cabeças, mostrando a curiosidade que nelas impera. Uma das maiores delícias da peça é o trio Antonio Carlos, Glorinha (depois falo nela) e Maria Inêz, em ação.     
      E as frases. Há as de Nelson, e as de Abujamra. Antonio Carlos é o responsável por um dos "bordões" (o Abu me mata) do diretor: "A vida é trânsito, é dia útil, não é domingo" - porém na boca do alucinado Antonio Carlos adquire outro sentido. E o "coveiro" (Lincoln Oliveira) e "policial", "narrador da história dos quatro ceguinhos"? E as frases do "homem de bem", o Dr. Sabino (João Fonseca), os provérbios de Salomão, "o sentimento de culpa nos salva", e as expressões faciais do Dr. Sabino. E o Padre de Roberto Lobo. A secretária Noêmia, interpretada por Rose Abdallah. Permitam-me destacar grandes atrizes, e grandes momentos, ali. Porém os Fodidos fazem de propósito, não dizem quem é quem, para os pobres dos críticos ficarem se puxando os cabelos. Tudo bem. Para mim há três atrizes: Rose Abdallah, Guta Stresser e Carolina Helena, responsáveis pelos momentos mais hilariantes e desconcertantes da peça.
     Thelmo Fernandes faz o ginecologista que desencadeia toda a tragédia, contando, para o pai que o noivo da filha é um homossexual. Acontece que ninguém está preocupado com isso. E a expressão facial do noivo-bicha (Alexandre Contini), de completa inocência, é uma transgressão. Filomena Mancuzo faz a puta escolhida e Denise Sant'Anna, a mãe. Sei que Christina Mayrink é Sandra, a amiga da secretária Noêmia. Xavier, o marido suicida, é interpretado por Claudio Tizo, com resquícios brechtianos da primeira montagem! (só a conheço pelas fotos ). No elenco temos Isabelle Cabral, Isley Clare, Kátia Sassen,  Márcia Marques, Marta Guedes fazendo os xipófagos. Não podemos esquecer do Zé Honório (Humberto Câmara), a criança que é chicoteada pelo pai que o descobre homossexual, e diz para ele "engolir o choro" enquanto apanha. Mais tarde Zé Honório dá o troco, sacrificando o velho pai. E a frase de Nelson: "A pederastia pinga das paredes em Copacabana". (Seria Nelson um puritano?).
     Tudo começa por causa da homossexualidade do noivo de Glorinha (Guta Stresser é "hors concours" com a sua "garota papo firme"); e culmina com o amor incestuoso de seu pai. Entre uma cena e outra, adultério explícito, "onanismo", e a maneira com que o Dr. Sabino conclui que não há pecado, quando a gente tem fé em Deus. Na ficha técnica, figurinos e cenário originais de Charles Möeller, remontagem de figurinos de Filomena Mancuzo; remontagem de cenário de Nello Marrese; música de André Abujamra, com citações de vários compositores, inclusive Wagner. Assistência de direção Paula Sandroni, que também aparece em algumas cenas como "A Santa". 
    Prêmio Shell de 1997 - Melhor Direção (Antonio Abujamra e João Fonseca), Melhor Figurino (Charles Möeller), indicação de melhor atriz, Guta Stresser.
É bom ver bom teatro!