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quarta-feira, 31 de outubro de 2012

"SINFONIA SONHO"

"SINFONIA SONHO" - KEVIN, O MENINO QUE QUERIA SER MÚSICA, E SUA AMADÍSSIMA IRMÃ.
                                 (ao fundo, a mãe maníaca e o outro pai - o do menino morto)
                                               (foto "Festival de Curitiba" - Divulgação)


CRITICA DE TEATRO
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Desde a simples apresentação dos atores no palco, frente a frente com a plateia, qual puros-sangues na pole position, sôfregos para disputarem um páreo - vamos nos preparando, nós, o público, para o que virá depois. Enquanto o autor e diretor Diogo Liberato lê as rubricas, gestos impacientes brotam no elenco, tentando avançar sobre a plateia, mas capturados a tempo. Tudo, no espetáculo, é preciso, medido. Há realmente, impaciência e sofreguidão. E nada do que acontece em cena é aleatório, tudo é sopesado, medido. Aliás, esse é um dos espetáculos mais limpos e precisos, em termos de ação cênica, a que me foi dado assistir, ultimamente.
     Estou me referindo a "Sinfonia Sonho" - na qual cairia bem um subtítulo: "uma narrativa de horror". Na cena, nada é negado. Estamos assistindo a jogos infantis, realizados por crianças inteligentes e precoces. Há, no ar, um clima David Lynch. Mas não somos inocentes: só não podemos imaginar o golpe que vai nos ferir profundamente.   
     Como observei acima, tudo é operado de maneira sistemática, para atingir a perfeição narrativa: bons atores, cenas bem resolvidas, equilíbrio de emoções. O desfecho pega de surpresa? Não. Mas o final é operado por dois atores que representam crianças. E sentimos uma dor profunda. Não é bom relembrar essa dor. No entanto, é vida pulsante, e não devemos nos negar a ela. Quem quiser assistir a um dos melhores momentos teatrais que se apresentam no Rio de Janeiro, ainda há tempo. E a autoria é de um coletivo de atores, em um exercício estruturado por Diogo Liberano, e orientado por Eleonora Fabião. Diz David Lynch: "Se você quiser pegar um peixinho, pode ficar em águas rasas. Mas se quer um peixe grande, terá que entrar em águas profundas. Quanto mais fundo, mais poderosos e mais puros são os peixes". Parece o óbvio, mas é apenas o belo.
     Estamos tratando de um ataque - massacre! - narrado ponto de vista infantil. (Desisti de me insurgir contra essa mania que temos de copiar a Matriz, e vou comentar, do ponto de vista bíblico...essa caça aos inocentes) Como é possível, em nosso país tropical, ficarem os jovens atirando com armas de fogo sobre seus iguais? Pura imitação! Só lá em cima mesmo, a quem Deus mandou o Dilúvio... e o comércio de armas! Por que será que o Brasil não tem imaginação? E logo nas escolas, onde se está ensaiando uma peça infantil? "Assim não vai sobrar coleguinha para o elenco", comenta um dos irmãos (não rigorosamente com essas palavras). "Vamos ter que ensaiar tudo de novo!" - reclama o filho Kevin, inteligente e precoce, que foi esperto - segundo a mãe maníaca - ao se livrar a tempo das balas! Há humor negro, também. 
     Não posso esquecer, de dentro de minha indignação, que se trata de uma tragédia moderna, e das boas. É teatro. E, sem saber quem é quem, neste coletivo (o programa não diz) destaco as interpretações dos dois irmãos, não sabendo qual é o mais genial - quase aposto no filho. Os pais - e o casal desejoso de ser pai - e aquele ator que ronda, sobrevoa, o espetáculo - lembrando, coincidentemente, o filho morto de "Quase Normal". É tudo muito bom. O filho narrando a própria morte, ultrapassa a todas as expectativas do horror. No elenco, atores oriundos da UFRJ, UniRio, UERJ (e, por ordem alfabética): Adassa Martins, Andréas Gatto, Dominique Arantes, Gunnar Borges, Laura Nielsen, Márcio Machado, Natássia Vello, Rodrigo Vrech, Virginia Maria/Marcéli Torquato. Eles já montaram vários espetáculos, e com sucesso. O nome do grupo é "Teatro Inominável". Destaque para Direção de Movimento de Caroline Helena, a quem posso encontrar nas trevas. O cenário de Leandro Ribeiro é despojado, facilitando as cenas através de sua  nudez. E elas, as cenas, posso garantir, são um nó na garganta. Mesmo assim, é bom ver bom teatro.
Outros elementos da Ficha Técnica:
Dramaturgia e Direção: Diogo Liberano
Orientação de Direção: Eleonora Fabião
Direção Musical: Phillippe Baptiste
Iluminação: Davi Palmeira e Thaís Bastos
Orientação de Iluminação: José Henrique Moreira
Preparação Vocal: Verônica Machado
Direção de Produção: Diogo Liberano
Realização: Teatro Inominável
Assessoria de Imprensa: Bruno Pacheco                 

"TUDO BALANÇA PORQUE DEUS DANÇA"

         
                  Aline Guimarães em "Tudo Balança Porque Deus Dança"                              
                                           (foto Carol Beiris)


CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

E, de repente, estamos diante de um espetáculo poético. Vamos para uma região onde "Tudo balança porque Deus dança". Sim, entramos em um espaço "sem ontem nem amanhã", como diz o poeta (o outro poeta). E não sabemos como será. Dependemos da natureza, sim! Ao longe, as luzes da cidade; aqui, o breu do morro Cara de Cão... e a lua cheia! Claro, assim foi no dia da estreia (27 de outubro), desse estranho espetáculo cuja dramaturgia é imaginada por Pedro Kosovski, a direção, de Álamo Facó, para um texto de Aline Guimarães, que também é a atriz do espetáculo.
          Fica a pergunta: Há, realmente, um texto?
     Trata-se de um espetáculo para espíritos aventureiros. Tremei, inimigos do mar! Vamos a ele, abençoados pela lua cheia, e por Cacilda Becker. Saímos de sua praça, na Urca, dentro de uma traineira que comporta 40 pessoas. O marinheiro, "gaúcho", solta as amarras e desfaz o nó. Basta uma leve pressão de sua mão, e estamos entregues ao mar. Mas não! Eis que surge, ao longe, uma figura estranha, mistura de índia e caiçara, remando a sua canoa e nos abordando, entrando no barco, murmurando: "fui buscar água de beber..." E entramos em um mundo onde a imaginação impera.  
     Sim, a nossa "caiçara" é descendente da uma tribo. Tupinambás? Temiminós? Ela tem experiência nessas lidas. Prepara a sua casa para nos receber, murmura pensamentos. Enquanto a esplêndida paisagem toma conta de tudo, lá fora. Não há poema que resista ao lento passar das luzes da Urca, a cidade agitada, ao longe, e o murmúrio da água. Sim, há também o barulho manso do motor, e as voltas que o Marujo dá, no comando do leme. Finalmente paramos em frente ao morro às escuras, silencia o motor, e uma voz nos leva a remotos tempos de conquistas: há franceses querendo nos tomar o paraíso e estabelecer a sua França Antártica. Algo mágico acontece. Em resposta à "fala da índia", os pássaros da floresta respondem: e uma inesperada sonoplastia se estabelece.
     E, como não é possível competir com a lua refletida no mar, com a cidade brilhando ao longe, com a escuridão das montanhas, eis que se fecham as cortinas, e o espetáculo começa! Mas não! Dentro dessa estranha cenografia, a índia/caiçara nos avisa, abrindo o chão de sua morada: "vou nadar, escalar a montanha...falar com eles...", e nós esperamos por esse  momento onde tudo é possível. E a vemos colocar as nadadeiras e sair, qual um peixe,  desaparecendo no mar... Mas não!
     Ela se balança ao luar.
     Não vou contar o espetáculo. Ou já contei, nem sei. "Tudo balança porque Deus dança", dizem as palavras de Aline. "Não se para um passo em movimento/ não se para um sonho em andamento/ não se para um amor em construção/ não se para uma onda na arrebentação..."//
   E conta: "ainda conheço pouco das palavras para decifrar minhas mirações/ E mais me cansa a busca do que me jorra o excesso/ Tudo passa quase que despercebido/ Prender a sombra fora do instante/ Só mesmo nas fronteiras raras e ilógicas/ Mesmo assim, tento ao máximo esse percurso de esvaziamento/ E alguns, como que por teimosia, borram papéis feito cicatrizes/ Enquanto minha devastação imprime essa fotografia de instantes"// (O texto acima é extraído do livro que dá nome ao espetáculo).  
     Vamos lá? O sonho parte às 20horas, de sábados e domingos. Chova ou faça sol. Não sei o que ofereço, ela não sabe o que vai nos dar. Mas é bom ser surpreendido. Atenção! Não se trata de mais um passeio turístico pela Guanabara. É  poesia pura. Boa viagem!
Ficha Técnica:
Texto e Atuação: Aline Guimarães
Dramaturgia: Pedro Kosovski
Supervisão e Direção: Álamo Facó
Sonoplastia: pássaros da floresta, motor do barco e megafone
Marujo: Roberto Pereira de Souza        
Trilha sonora: Rodrigo Braga
Figurino: Carol Casarin
Arte: Thiago Mendonça
Direção de Movimento: Isabella Duvivier
Iluminação: Paulo Medeiros
Produção: Bianca Faro
Assessoria de Imprensa: Eleonora Jaeger





sexta-feira, 26 de outubro de 2012

"A REVISTA DO ANO - O OLIMPO CARIOCA"

 Rogério Freitas (Hefaísto), Alcemar Vieira (Dionísio) e Helga Nemeczyk (Labareda), em "A Revista do Ano - o Olimpo Carioca"
(foto Eduardo Alonso)

CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Estreou, no Teatro Clara Nunes, no dia 25 de novembro de 2012, "A Revista do Ano - o Olimpo Carioca", texto de Tania Brandão, com direção de Sérgio Módena; direção musical Marco Pereira e coreografia Sueli Guerra. Tudo com a supervisão de João Fonseca. Estes cinco nomes trouxeram de volta as "revistas do ano". Arthur Azevedo, nos idos do século XIX, as instaurou e, em boa hora, Tania Brandão as reinaugurou. Não devemos esquecer que Tania, antes de ser uma especialista em teatro, é também uma historiadora (sua formação é Historia), daí a precisão do texto: "pero sin perder la ternura, jamás!". Tania captou o que acontece agora, com um olhar bem humorado e carinhoso sobre o Brasil. Quanto aos políticos... Democracia é pra isso mesmo, ora!                                 
     Como sabemos, as revistas do ano representavam - e representam agora! - uma brincadeira democrática que envolve o povo e os poderosos da ocasião. Como diz Tania: "quem estuda hoje a revista de ano se surpreende: é impressionante como ela traduz um ponto de vista cidadão, questionador, participativo". É isso. Juntos, os quatro elementos, fogo, terra, água  e ar, ou seja: Tania, Sergio, Marco e Sueli, criaram essa participação, e a plateia, entusiasmada, comemorou o acontecimento. Vamos a ele.  
     Como diz a autora, "uma cena se inventa". Foi a partir de sua imaginação que surgiu a Labareda! (Helga Nemeczyk), uma adaptável chama, que tira "de letra" todas as situações. Essa chama habitava o Olimpo grego, junto com os deuses Hefaísto, do fogo (Rogerio Freitas) e Dionísio, do vinho (Alcemar Vieira). Cansados com a pasmaceira e a decadência das hostes gregas, resolveram os três descobrir outras paragens. Adivinhem aonde eles foram parar? Pois é: no Rio de Janeiro! Embora essa ideia não seja tão original assim, a maneira pela qual ela foi sustentada (e desenvolvida) é que faz a soma.
     Durante uma hora e meia - e não sentimos o tempo passar - fatos recentes da história desfilam diante de nossos olhos, sempre sob o olhar carinhoso de Labareda, à procura de seu bom amigo Hefaísto, o fogo (Rogério Freitas, uma vocação para a comédia), que se perdeu da dupla Dionísio e Labareda, na explosão da viagem grega! O  espetáculo é um bom pretexto para o público fazer uma viagem crítica ao Rio de Janeiro, suas explosões de bueiros, seus bairros agitados, seu povo. E o texto vai comentando as novidades estruturais do "futuro do prefeito" (Édio Nunes) - e surpreendemos as brincadeiras com a gramática, e as siglas! - UPPs, UPAs, Zona Portuária, BRTs, queda da Perimetral (excelente cena, com os desenhos de Gentileza no figurino). Perimetral (Ana Carbatti)  se vinga de sua decadência desejando um engarrafamento monstro para uma Zona Portuária sem ela!
     E o jogo de "A Revista do Ano" se faz, com o nosso Rio e sua  parceria com a "República" (Stela Maria Rodrigues) e o "Brasil" (Celso André), casal que tem ótimas cenas, e "promete" ajudar os cariocas, desde que não sejam perturbados pela "Imprensa"! É aí que surgem as mazelas cariocas, comentadas com muito bom humor pelo elenco. Temos o Escândalo (um "agitado" e excelente Milton Filho) à procura da imprensa marrom para transmitir as novidades. "Escândalo" é um travesti que faz a tradução, para o público - à sua moda bem popular - o que está realmente acontecendo nas "grandes rodas". Hilário. Enquanto isso Labareda só pensa em retornar à sua combalida terrinha, pois naquele lugar onde eles estão "os poderosos só fazem festinha privê". Ela adverte para Dionísio "não vá se fascinar com o poder"  e suas tentações (fascínio esse que atingiu "certos partidos populares" do presente, que a Revista do Ano não cita, mas deixa subentendido). Labareda, a encarregada pelos deuses de não deixar a chama se apagar - e Helga Nemeczyk é uma Labareda insuperável! - acaba aderindo ao charme carioca e não quer mais voltar para a sua abandonada Grécia. Ela e Dionísio (Alcemar Vieira é o simpático bebum grego), fazem um pacto, e se rendem à carioquice geral.
     Nesse meio tempo, entre a chegada dos três gregos e sua eterna permanência na Cidade Maravilhosa, há sugestões de desfiles de escolas de samba; noites na Lapa (o bairro é representado por Ana Velloso, que também interpreta, em outro contexto, uma colombiana hilária); visitas à decadente praia de Copacabana (destaque para Vera Novello e seu "Rap da Vovó Copacabana", que, por acaso, é composição de Tania Brandão e Marco Pereira); encontro com mães de santo (destaque para Ana Carbatti); e com a Lei Seca; com o dinheiro na cueca!, com os índios, enfim - tudo o que tem direito uma comédia crítica.  
     Enquanto isso, os Teatros Clara Nunes, Sesc Copacabana, Carlos Gomes e Theatro Municipal dialogam entre si, com direito a entreato e pano de boca! como nas antigas produções. Os três primeiros "repreendem" o Theatro Municipal por ter aderido à música clássica, em vez de se ligar aos amantes da popular. Há, entre o Teatro Clara Nunes (Stela Maria Rodrigues), e o Espaço Sesc de Copacabana (Marta Metzler), um hilário "papo cabeça". O teatro Carlos Gomes (Ana Carbatti), se apresenta com a sua música preferida, "O Guarani". Estas são apenas algumas, das inúmeras referências e citações com que a autora presenteia a plateia: tudo coroado - em frente ao pano de boca - com a interpretação de uma área lírica, pela voz surpreendente de Mona Vilardo. Édio Nunes e Marcelo Capobiango mandam seus recados: Nunes como "Futuro do Prefeito" e "Cais do Porto", e Capiobiango como "Povo". O que não é pouco.
     O elenco, afinadíssimo, sustenta esse pout-porri de músicas e ação, de maneira gloriosa. Começa com a apresentação de "Labareda", dançada pela própria, música de Vinicius de Moraes e Baden Powell: é o cartão de visitas do espetáculo. A apoteose final se inicia com "Valsa de uma Cidade", de Ismael Neto e Antonio Maria, depois vem Aquele abraço, de Gilberto Gil, depois "Rio 40º", Fausto Fawcet, Fernanda Abreu e Laufer; "Engenho de Dentro", de Jorge Bem Jor, e por aí vai. Durante o espetáculo, músicas como "Benguelê", de Pixinguinha e Gastão Vianna;  "Funk do Bueiro", MC Cezinha da Vila. Termina com Tim Maia cantando "Do Leme ao Pontal"... dá vontade de ver tudo de novo.
     Músicos: Itamar Assiere, Teclado; Nando Duarte, Violão/Guitarra; Ricardo Rente, Sax/Flauta; Humberto Araujo, Sax/Flauta; Pedro Mann, Contrabaixo; Carlos Cesar Motta, Bateria; Firmino, Percussão. Os músicos ficam acomodados no alto do cenário, como o pano de fundo de uma exposição. O cenário é de uma criatividade espontânea, parece ter "brotado", junto com o espetáculo. Cenários e figurinos: Ronald Teixeira & Flavio Graf. Iluminação: Renato Machado; Design de Som: Branco Ferreira; Preparação Vocal: Débora Garcia; Pianista Assistente: Gustavo Salgado. Idealização: Marta Metzler e Marco Pereira; Assessoria de Imprensa, João Pontes e Stella Stephany. 

terça-feira, 23 de outubro de 2012

"MACBETH"

Lady Macbeth (Claudio Fontana), Macbeth (Marcello Antony)
Shakespeare
(foto João Caldas)

CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Acho que fui a única crítica do Rio de Janeiro que gostou do "Macbeth" dirigido por Gabriel Villela, e aqui apresentado no fim de semana (dias 10 a 14 de outubro, no Teatro dos 4). Enfim, o julgamento crítico acaba ficando algo muito subjetivo. Vamos aos pontos positivos: antes de tudo, a segurança dos atores, a impostação da voz, a sua movimentação. Francesca Della Monica, com a sua "antropologia da voz", diz-nos: "Em Macbeth, Shakespeare renuncia à convenção aristotélica de espaço único, fazendo explodir a ação em uma multiplicidade de ambientes físicos e simbólicos".
     Na montagem de Villela, o simbólico é enfatizado pelo diretor. A tal ponto, que causa estranheza aos mais ortodoxos admiradores do dramaturgo, pois muitas vezes a palavra, neste espetáculo, é trocada pelo gesto enfático. Unindo-se à proposta, a iluminação de Wagner Freire enfatiza o clima simbólico, com suas lamparinas e pontos de luz. O trabalho de movimento de Ricardo Rizzo se harmoniza com o todo, estabelecendo o desempenho preciso dos atores. Ainda sobre a ficha técnica: a ambientação musical de Ernani Maletta  capta o ritmo da palavra falada  - e como os atores de Villela externam bem esse ritmo! e o responsável pela trilha sonora, ainda o diretor Villela, tem a sensibilidade de colocar, pontuando o final da tragédia, a modernidade incontestável de uma frase musical de Jim Morrison na música "The End", repetindo o refrão: "This is the end, my friend".
     Tocamos em seis pontos importantes que dão força ao espetáculo. O sétimo (não obrigatoriamente nessa ordem) é o figurino, de Shicó do Mamulengo e Gabriel Villela,  onde funciona perfeitamente uma estética que une Oriente e Ocidente, neste país cosmopolita que é o Brasil. É a marca registrada do diretor: das cabeças coroadas da velha Europa às mais ousadas representações do barroco nordestino brasileiro.  Dessa vez foram destacados os colarinhos engomados de um passado longínquo. Usanças de uma época, são concessões aos velhos símbolos. Quanto ao mais, temos os bordados espelhados da Índia, os adereços estilizados de Shicó,  coroas, guilros e arames, representando as "tecedeiras" do nordeste brasileiro. Eles  enfeitam as cabeças coroadas. São rendas, teares, agulhas, que se transformam em espadas, em cetros - em palácios, estabelecendo uma dinâmica que dá vida ao espetáculo. E tudo termina em rock.
     Aliás, depois do Macbeth de Fauzi Arap (onde os atores declamavam Shakespeare ao som de rock!), nada mais provocador apareceu nos palcos brasileiros em relação a Macbeth, ultimamente. O espetáculo de Villela está recheado de símbolos, talvez por isso tanta liberdade com o texto (tradução de Marcos Daud), pois os gestos e os olhares substituem as enfatizadas passagens de ação e horror. O assassinato dos filhos e da esposa de Macduff (Helio Cicero) fica, assim, só na vingança. Não há o habitual impacto da narrativa com a chegada dos assassinos, e o terror de Lady Macduff, pois os fatos, simplesmente, só foram  relatados! Talvez o horror da nossa imaginação seja mais terrível que a cena em si. Talvez. Esse corte pode ser considerado (por alguns) a grande falha do espetáculo. Mas foi assim que o diretor pensou a ação que iria contar. Mexer com o texto também faz parte das encenações bem sucedidas. Outra foi a bondade de Duncan (Helio Cicero) ser confundida com placidez. Entretanto, Duncan é apresentado, neste espetáculo, como um Rei simpático e cheio de urbanidade. 
     Os símbolos, Lady Macbeth (Claudio Fontana), os carrega com mais desenvoltura entre seus véus. Inesquecível a simbólica cena dos dois esposos, esvoaçando como dois morcegos noturnos, ao encontro de sua própria desgraça. O sangue que escorre desse trono fracassado é representado por fios de seda caindo das mãos ensanguentadas dos esposos (e das mãos do assassinado Duncan). Cenas extremamente visuais, como visuais são as marcações dos atores, dirigidos por César Augusto, Ivan Andrade e Rodrigo Audi, com supervisão geral de Gabriel Villela. O diretor seguiu à risca as orientações da Cia "Os Homens do Rei" (só para lembrar: Jaime I, sucessor de Elizabeth, filho de Mary Stuart, era também um apaixonado pelo teatro!). Naquele tempo não havia mulheres no palco. No Macbeth de Villela também não. E Claudio Fontana faz com galhardia o papel do efebo.
     Entre as cenas inesquecíveis temos ainda a da morte da Lady, voltando ao útero da criação, útero esse encarnado na figura do autor/narrador (Shakespeare?), interpretado por Carlos Morelli. Ele é o dono do destino de Lady Macbeth. O oitavo ponto culminante do espetáculo é a cenografia de Márcio Vinicius. Enquanto no The Globe eram feitas passagens com telões indicando os lugares percorridos e as cenas declamadas, Márcio Vinicius coloca a ação entre teares, esculturas representando árvores, muita renda e tecidos nordestinos,  caixotes, malas, e bancos. O cenário é provocante, instigante, é um campo de batalha desarrumado, como é desarrumado o espírito da peça. É a região onde tudo pode acontecer. Sim, dirão os que me lêem agora, há nesta crítica muita descrição da ficha técnica, mas Shakespeare é texto... é interpretação.
     Pois bem, falta pouco, já falei do trabalho de Francesca com a antropologia da voz. Falarei agora da "força de intenção", de Babaya, preparadora vocal, e a projeção da voz dos atores. Diz Babaya: "cuido da palavra [...] a montagem proposta por Gabriel Villela tem traços épicos [...] e isso exige uma projeção vocal de grande intensidade, mas o diretor quer delicadeza, simplicidade na interpretação e evitar os "exageros".  Perfeito. E percebemos, como resultado de seu trabalho, a respiração de Marcello Antony (Macbeth), chegando a surpreender o acerto nas inflexões do personagem: perplexidade, fúria, ambição, medo - tudo isso representado pelo tom da voz e a convincente expressão facial, sem exageros. Sem querer parecer iconoclasta, digo que Gabriel Villela foi ao ponto, com essa criação do guerreiro infame: os demais participantes, com exceção da Lady Macbeth, parecem coadjuvantes frente à magnitude desse excelente personagem. Destacam-se, além do casal, as três bruxas que desafiam o público, interpretadas por Marco Furlan, José Rosa e Rogerio Brito.      
     Há também atores que marcam seus personagens, neste Macbeth, e damos como exemplo o Banquo de Marco Antonio Pâmio; o Malcolm, de Marco Furlan, e os vários papéis em que se desdobra Rogerio Brito, principalmente o porteiro da noite, com as sacudidelas sonoras de ombros, guizos e moedas, e seu humor,  - abrindo as tão aclamadas intervenções do povo nas peças de Shakespeare. É sua, também, a interpretação do velho, que exclama: "Os poderes celestiais estão demonstrando o seu desagrado". Essa constatação é lamentada por todos os personagens "do bem", na tragédia. Entretanto, o "diretor geral" teve a delicadeza de não fazer nenhuma ligação com as coisas do nosso país, demonstrando com isso sensibilidade, ao mesmo tempo em que soube atender aos insights psicológicos do autor. Única falha, para quem gosta de efemérides assustadoras: as aparições do fantasma "não" têm os apelos aterrorizantes de montagens anteriores, embora a perplexidade e o terror estejam estampados nas expressões do Rei usurpador.
    A união São Paulo/Minas Gerais esteve, mais uma vez, bem representada. É sempre um prazer ver os espetáculos assinados por Gabriel Villela. Desejamos um pronto regresso de sua Cia ao Rio de Janeiro, pois muita gente não teve oportunidade de assistir a esse Macbeth! 

terça-feira, 16 de outubro de 2012

"LÍQUIDO TÁTIL"

Cena de "Liquido Tátil", encenação de Daniel Veronese. Em primeiro plano Marcelo Castro, o marido Peter.  Ao fundo, Gustavo Bones (Michael) e Grace Passô (Nina)
(foto Guto Muniz) 

CRÍTICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Eis que o grupo mineiro Espanca! está em temporada no Rio de Janeiro. Boas notícias para os amantes de teatro. Do trabalho desse grupo assisti somente "Congresso Internacional de Medo", em 2008, e já foi o suficiente para desejar a sua volta à cidade. Na época, a atriz e diretora Grace Passô, a quem não conheci (ela não estava em cena ou, se estava, era a mulher com a burka!), se encarregou da adaptação de um texto de Drummond levado em cena. Na atual temporada, no CCBB, o grupo convidou Daniel Veronese para dirigir um texto dele, de 1997: "O Líquido Tátil". De Veronese tivemos oportunidade de assistir, somente no 'Porto Alegre em Cena' de 2007, uma adaptação de "Tio Vânia", de Tchecov, cujo título era "Espia una mujer que se Mata". Há algo em comum com o trabalho apresentado por ele no "Em Cena" com o de agora? Sim, há duas coisas, pelo menos, em comum: a estranheza... e o cenário! Um "levar em cena" desconcertante frequenta os dois espetáculos.        
       No momento Espanca! desenvolve o projeto "Encontro Tátil", no qual pesquisa "práticas do realismo contemporâneo". Em cena, três atores do grupo refletem sobre os mais variados assuntos. São dois irmãos: Michael Expósito (Gustavo Bones); Peter Expósito (Marcelo Castro) e a ex-atriz Nina Hagëken (Grace Passô), é esposa de um deles. Os três abordam, através de um texto absolutamente surreal, criado por Veronese (Gustavo Bones o traduz para o português), questões de estética cinematográfica e teatral, além de problemas como "os malefícios do fumo", e muito sexo.
     Nessa mistura de estilos que é o texto, a ação teatral - na verdade, a ação "é o problema"! - deixa de lado os códigos realistas ou os do teatro do absurdo, e passa a se dedicar a cortes na narrativa. O público parece reagir bem a essa, digamos assim, "vivacidade cênica", porém não sabe se aplaude ou gargalha. Na verdade, o que se desenrola na frente deles é algo assim como um "mix" de William Burroughs e Tennessee Williams, com os olhos de Daniel Veronese.         
     A história começa com os dois esposos (Peter e Nina) falando sobre a sua união matrimonial e a anterior carreira teatral - bem sucedida e abandonada - de Nina. Enquanto o casal convive com o seu habitual cotidiano, chega o cunhado Michael, trazendo de presente para Nina um cachorrinho de pelúcia. E aí se inicia a fase William Borroughs do espetáculo: o diálogo entre os três participantes toma, declaradamente,  o rumo do teatro do absurdo (quem já leu "O gato por dentro", de Borroughs, sabe do que estou falando), ao relembrar a convivência de Nina, em cena, com um verdadeiro "cão ator".
      Grace Passô, a Nina, finalmente materializou-se na minha frente! Ela é a atriz mais carismática que conheço, e transpira inteligência. Não é a toa que é a consequência: imagino que os dois atores que completam o elenco de "Liquido Tátil", Gustavo Bones e Marcelo Castro, fazem parte do trabalho de conjunto, que é o ideal do grupo. Três ótimos atores, por sinal. Para eles, o teatro contemporâneo está em  processo "de criação compartilhada". Grace Passô vem atuando neste sentido também como dramaturga do grupo; a próxima peça a ser encenada por eles, no CCBB, "Amores Surdos", é de sua autoria.  
     O Espanca! existe desde 2004, e já ganhou prêmios com "Por Elise", também de Grace Passô. O caminho agora é o contato com o teatro latino-americano, daí o papel de Veronese juntando-se ao espírito inovador do Espanca! que, por sua vez,  tem tudo a ver com o teatro do argentino, o "desmascaramento da ilusão teatral" que ele procura. Assisti-los é uma experiência inesquecível e, como dizem os franceses, "remarcable".
     Ficha Técnica: Texto e Direção: Daniel Veronese, que além dessas funções, também reorganiza a cenografia de "Espia una mujer..." deixando-a afeita aos impasses da encenação e dos golpes dos atores. Solução original e de recursos infinitos. Veronese também selecionou trechos do filme  "Stalker", de Tarkovsky, que é projetado em cena, com trilha sonora em russo. Luz também do diretor. Não me arrisco a comentar a tradução das legendas, pois não sei russo... Cenotécnico: Nilson dos Santos; Iluminador: Edimar Pinto. Edição de Vídeo: Fábio Gruppi. Figurinos do próprio Espanca! e Coordenação de Produção de Aline Vila Real; Assistência de Produção: Denise Leal; Assessoria de Imprensa: Bianca Senna e Sabina Schemberg. O "Líquido Tátil" vai até 4 de novembro, no CCBB. Não percam!           
   

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

"IL PRIMO MIRACOLO"

Roberto Birindelli em "Il Primo Miracolo", de Dario Fó
(foto: Fernando Pires)

CRITICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Os monólogos de Dario Fo, assim como as peças de Ionesco, estão sempre surgindo,  inesgotáveis e autênticos. Alguns monólogos, Dario Fó os criou com sua mulher e parceira, Franca Rame. O que está em cartaz no teatro Cândido Mendes de Ipanema/RJ, "Il Primo Miracolo", com tradução e interpretação de Roberto Birindelli, é uma sátira aos primeiros anos da vida de Jesus Cristo. Talvez um 5º Evangelho, à maneira de Dario Fó. Um desafio. Foram muitos os autores, católicos ou não, que ambicionaram (ou mesmo só esboçaram) tal feito. Alguns o tentaram a sério, como José Saramago, em "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", no qual chega a mencionar que Jesus tinha irmãos; ou Eric-Emmanuel Schmitt criando "Mes Évangiles". Não é o caso de Fó, apesar de parecer à procura dos famosos primeiros anos da vida de Cristo - tão desconhecidos de  todos nós - apesar do tom satírico.
     Anteriormente, como sabemos, temos notícia de Jesus menino através de sua visita ao Templo, em Jerusalém, aos 12 anos. "O resto é silêncio", como diria certo dramaturgo, em outro contexto. Agora, a "adaptação" de Fó recria, em cima de histórias populares do Sul da Itália, diretamente de Palermo a Jerusalém -  com direito a São Francisco de Assis e seus passarinhos voadores - e inspira o menino Jesus em  recriações e milagres. O primeiro desses milagres é feito em torno de pássaros e outras imagens de barro que conseguem voar. Um exagero, até pedra voa, nessa história. De certa forma, voltamos aos primeiros tempos, bíblicos, da criação do homem, assoprado pelo Pai em um punhado de terra... Lembram?
     Em "Il Primo Miracolo" Roberto Birindelli segue à risca os passos de Dario Fó, relatando o nascimento em Belém e fazendo um "aquecimento" com o público através de uma provocação: "alguém aqui conhece os evangelhos?", pergunta e, a partir do pressuposto de uma negativa, o ator enfrenta, com irreverência clownesca, a plateia divertida. (Os monólogos de Fó abrem caminho para o histrionismo, e Birindelli é um bom exemplo). Uruguaio radicado "no mundo", escolheu o Rio de Janeiro para um longo período de reflexão teatral, e sente-se, ao que parece, "em casa". Há 20 anos recria, nas ruas e praças do Rio (segundo fui informada), o mesmo espetáculo. Porém, dessa vez, estreia com uma nova abordagem, inspirada pela direção de Ernesto Piccolo. O texto, uma descrição fescenina da chegada dos reis magos, amplia seu caráter popular através de um relato muito vivo e encadeado de eventos. Começa com a descrição do primeiro Rei "Mago" (eram eles astrólogos descobridores de estrelas?), Melchior, "um rei com muito ouro na cabeça... cara fechada e nariz adunco que xingava e maldizia todos os santos porque tinha furúnculos desse tamanho na bunda e a cada cavalgada NHAC! Eram espremidos!"
     Com esta apresentação irreverente podemos nos preparar para o que vem depois: as brincadeiras do menino deus com os meninos da redondeza, que não querem recebê-lo e o chamam de "palestina"; não querem aceitá-lo com amigo, até que ele começa a fazer passarinhos de barro voarem, a um sopro seu, interessando os meninos interesseiros! O texto é entremeado de críticas políticas e sociais, reforçando-as quando aparece o "filho do patrão" - o reizinho do lugar - e acaba com a brincadeira destruindo os brinquedos a chutes de cavalo. Vendo a cena JC chama O Pai, lá do céu, e diz pra ele que quer "matar!" o filho do patrão! O pequeno Jesus tem ódio no coração, o que determina toda uma admoestação do Pai sobre a paz entre os homens, etc.                
     O texto é irresistível, engraçado, e requer muito talento do ator. É um teatro de contato imediato com a plateia. Birindelli comenta o que está sentindo, se dirige ao público, diz, por exemplo, que "já não é o mesmo de 20 anos atrás", em relação ao seu fôlego, e cumpre seu papel com técnica e entrega. Não podemos esquecer que há outro monólogo de Fó rodando há anos pela cidade: é o interpretado por Julio Adrião, "A Descoberta das Américas", no qual também os papéis são alternados, exigindo enorme versatilidade do ator. Entretanto, o que particulariza "Il Primo Miracolo" é a tentativa, bem sucedida, de satirizar um assunto que deixou de ser canônico para se tornar "a voz do povo": os dogmas da Igreja Católica.
     E assim vemos satirizada a virgindade de Maria; a falta de paciência de José, que de santo não tem nada; a mãe de Maria, a "santa" Anna, que de piedosa e tranquila se transforma em uma alucinada "avó". E por aí vai, tudo interpretado por um só Birindelli. O ator se desdobra, e se diverte. Nem pensar em fazer isso com Maomé, não é mesmo? Há um deserto que se coloca entre as duas civilizações, e é preciso respeitá-lo. Ninguém vive, impunemente, no deserto. Vocês conhecem o deserto republicano dos americanos? Acho que lá Dario Fó não seria bem recebido, se os satirizasse. Mas isso já é outra história.
     Concluindo: o monólogo interpretado por Roberto Birindelli cumpre a sua missão, nos moldes que nos deixou o autor. Prevejo uma longa vida a essa versão do evangelho de Cristo, uma parte não desvendada, mas muito imaginada, da infância do Salvador. Um monólogo cuja única pretensão é ser irreverente e iconoclasta: o que não é pouco. Trata-se de um espetáculo que se reinventou. Não sabemos até que ponto, porém nos assegura  Ernesto Piccolo que "reinventar-se não é uma tarefa fácil". Constatamos que, em seu aspecto externo, a versão atual dos Evangelhos necessita apenas de um palco em forma de arena, público, e um ator. Não há figurinos, apenas a roupa masculina cotidiana, e a iluminação. Ficha técnica: luz de Tiago Mantovani; preparação vocal Rose Gonçalves; direção de produção Cássia Vilasbôas; assistência de direção Edward Boggiss. 

sábado, 6 de outubro de 2012

"BARCO DE PAPEL"

Maria Mariana em "Barco de Papel"
 (foto Rodrigo Castro)

CRÍTICA TEATRAL
IDA VICENZIA FLORES
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Do ponto de vista da criação contemporânea, o monólogo é uma estética que se impõe, com o ator confiando-se ao público. É a maneira mais completa que o artista encontrou para se fazer compreender. Ultimamente, nos palcos do Rio de Janeiro, "Barco de Papel", monólogo de Maria Mariana (Espaço Rogerio Cardoso, Casa de Laura Alvim), se impõe pela força poética. Trata-se de um espetáculo simples, como simples costuma ser a verdadeira arte. E Maria, aos poucos, vai nos conquistando.
     Percebemos a influência de poetas consagrados, alguns citados, como é o caso de Rainer Maria Rilke e a suas "Cartas a um Jovem Poeta", e outros, como Fernando Pessoa e seus apelos ao Mar. Simples assim. Quem já não pensou nos grandes poetas para sustentar o que se quer dizer? Entretanto, apesar de seu aspecto de "obra inacabada", o barco de Maria Mariana vai, aos poucos, revelando um potencial criativo muito especial, muito próprio, original, diria. O que não é pouco.
     Mas o que é "acabado", quando a vida ainda está em curso? A autora, diretora e atriz coloca no palco a sua vida e, ao se colocar, vai refletindo sobre o que se impõe para a realização pessoal de cada um de nós. Ainda bem que somos seres em transformação: Maria Mariana teve seu primeiro grande sucesso há 20 anos, abordando as descobertas de uma adolescente, e agora, véspera de completar 40 anos, mostra-nos a encruzilhada de uma mulher. Tudo já foi feito. Há, entretanto, folhas de papel e um destino a ser cumprido. É o chamado da arte. Há um grande compromisso pela frente.
     O que mais nos encanta no espetáculo é que a atriz não quer impor nada "genial", "intelectual". Ela simplesmente mostra as fases da vida, e as possibilidades de desenvolvimento que (ainda) se apresentam, depois de ter se realizado como mulher, mãe e filha. Há algo mais, algo que a chama para outros caminhos.
     A autora apresenta quatro visões da mulher (pode ser qualquer uma de nós, em qualquer fase da vida): Vera, a sedutora; Maria Gilda, a intelectual; Diana, a maternal; e Marta, a espiritual. Eis a identificação do público (feminino). Há sempre uma ligação com os problemas da atriz/personagem, mas Maria Mariana, enquanto expõe problemas, se propõe. Contrapondo-se às inseguranças, devaneios e impossibilidades das quatro personagens, a presença do Marujo (aliás, ao criar o Marujo, Mariana caracteriza e interpreta, com propriedade, a presença masculina). Em geral, está bem realizado o jogo cênico da alternância dos personagens, em seu monólogo.
     E aí temos a revelação de Mariana poeta. Trata-se de uma surpresa. "Barco de Papel" é, sobretudo, um espetáculo poético, no qual as linguagens vão se entrelaçando: Angelina Jolie vive e está presente, na sedutora; Maria Gilda, a intelectual, se impõe com as suas citações e certezas; as mães (a "perfeita" e a maternal Diana) vão se alternando, em um jogo cênico seguro e divertido. Entretanto, infelizmente, há no final o "retorno da adolescente". Há o pânico. Há um corte na ação que enfraquece o final. Como seria se Maria Gilda se impusesse? É tão assustador assim assumir a própria vida?
     Trata-se de um espetáculo agradável e despretensioso. A supervisão dos figurinos (corretos) é de Priscila Rozenbaum; supervisão de direção Domingos Oliveira; supervisão de cenário (que dá um tom simbólico ao espetáculo, junto com a luz), de Fernando Mello da Costa, luz de Fred Eça; programação visual Carlos Paiva; grande inspiradora: Lenita Plonczynski. Assistente de direção, Cristina Bethencourt. Assinatura geral de Maria Mariana e, certamente, as músicas (Liszt? Bach?) também foram selecionadas pela atriz. Vale a pena conferir o espetáculo.