Páginas

quinta-feira, 20 de março de 2014

"A PORTA DA FRENTE"

Rogério Freitas (o corretor de imóveis) e Jorge Caetano (o  crossdresser Sasha), em "A Porta da Frente", de Julia Spadaccini. 


 IDA VICENZIA - CRÍTICA DE TEATRO
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Interessante essa encenação de um crossdresser, em "A Porta da Frente", de Julia Spadaccini, atualmente em cartaz no Laura Alvim. O destaque está bem no centro do palco, e na revolução que faz nas cabeças. O crossdresser Sasha (interpretado por Jorge Caetano), é uma pessoa divertida, ética, que respeita e quer ser respeitado. Coisa intrigante, ele é o personagem mais normal da peça. 

Ao que parece, leciona canto. Ao menos é o que ele diz - e mostra. Sua porta da frente está sempre aberta para entender e dar um pouco de bom senso às pessoas. Sasha pode ser uma representação do andrógino do futuro. E aí pensamos em Laerte, o quadrinista, aquele homem/mulher, sem perder a masculinidade. Pensamos também "naqueles reis", como o Louis XV, másculo, bonitão, e vestido como um crossdresser. Na verdade, esse personagem é atemporal.

Sasha se diverte com a reação de seus vizinhos, e aproveita para dar um show com seus dotes de cantor. E argumenta, para o "vizinho estressado": "Você fala? Então pode cantar". Nem é preciso dizer que as cenas de Sasha (Jorge Caetano), com o "vizinho estressado", o corretor de imóveis (Rogério Freitas) são muito divertidas.

Julia Spadaccini é uma dramaturga brasileira que vai ficar conhecida além fronteiras... Em "A Porta da Frente" ela faz uma velada homenagem a Tchecov. É uma de suas sutilezas. A autora é espontânea e acertada, na comedia e na tragédia.  "O Céu está Vazio" e "Aos Domingos" (únicos assistidos por esta crítica), foram o suficiente para chegar a essa sensação. Não que "O Céu está Vazio" seja uma comedia, e "Aos Domingos" uma tragédia....Julia mexe com as cabeças, faz pensar, e sabe como finalizar uma peça. A dupla Jorge Caetano e Spadaccini está dando certo. Caetano também dirige, dessa vez em dupla com Marco André Nunes. 

Temos ainda, no palco, a mãe neurótica e algo alienada, com possíveis amores virtuais. Malu Valle está ótima. E há os adolescentes maluquinhos, e ainda por cima gêmeos, interpretados por Felipe Hauit e Nina Reis. E a avó (Maria Esmeralda Forte), a personagem que alimenta aquele tipo de mistério que a velhice trás -  surpreendendo com a sua lucidez -  ou enlouquecendo a todos com a sua loucura. A peça é uma discussão séria travestida em comedia familiar.

Figurinos muito apropriados aos personagens, de Rui Cortez. O cenário de Aurora de Campos dá a chave para uma aparente comedia de encontros e desencontros - quase um boulevard moderno -  para despistar o real desencontro estabelecido pelo texto. A iluminação, bastante viva, é de Renato Machado; Direção de Movimento: Márcia Rubin; Direção de Vídeo: Gustavo Gelmini; Trilha musical: Jorge Caetano e Marco André Nunes; Direção Musical: Felipe Storino.


domingo, 16 de março de 2014

"O DUELO"

Pascoal da Conceição (Von Koren), Vanderlei Bernardino (Aleksandr Samóilenko) e Fredy Állan (Diácomo Pobêdov)

IDA  VICENZIA   
(da  Associação  Internacional  de  Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Talvez ninguém tenha registrado a avassaladora modernidade da recente montagem de Tchecov, feita pela Mundana Companhia. A adaptação, para teatro, de uma história curta, (novela), de Tchecov, "O Duelo", é uma das mais belas e dantescas representações da natureza em fúria.

No início, o mistério do teatro simbolista. A entrega a essa inesperada mistura de linguagens nos surpreende agradavelmente. A primeira cena, o misterioso encontro do moderno e do supra-moderno: esse cadáver (fantasma?), com gestos impulsionados pelo balanço da embarcação é também uma verdadeira obra-prima de linguagem corporal, mérito de Tarina Botelho e do ator Sergio Siviero.

Parece incrível que o teatro, somente agora, tenha destacado, de maneira livre, o momento de Tchecov. Explico: oriundo de uma época cultural muito rica, o autor russo procurou entender, passo a passo, nesta novela, o que prometia o futuro, ou seja, os conflitos políticos e religiosos que viriam.

Nesta montagem de Tchecov não há estrelas, somente pessoas querendo entender os acontecimentos. Há uma entrega total de seus participantes, começando pelo trabalho de Georgette Fadel, na direção. A adaptação do texto, feita por Vadim Nikitin e Aury Porto deve ter sido prazerosa, pois a novela "O Duelo" é extremamente teatral. Primorosa e forte é a concepção da cenografia e a direção de arte de Laura Vinci. A preparação corporal de Tarina Quelho, como já foi observado, não poderia ser mais exata, estendendo a sua sensibilidade à atuação do elenco. E Guilherme Bonfanti, na iluminação, unindo seu trabalho à direção musical e operação de som de Otávio Ortega, fazem um belo dueto. É tudo tão bem resolvido que temos a impressão de que as vastas terras do Cáucaso e seus desmandos naturais, sempre estiveram ali, próximos de nós. Há outro personagem, talvez o mais importante de todos: o Mar. A voz de Tchecov reforça a poesia desse gigante: e "... foram encobertos por uma grande onda, que depois foi quebrar nas pedras e, de volta ao mar, desabou uivando sobre os pedregulhos". O espaço Tom Jobim,e a nossa imaginação, receberam muito bem as embarcações e o mar.

Há um mundo isolado, e personagens que se adaptaram a viver neste mundo. Há, porém, uma força desafiante, incorporada no personagem de Von Koren, esse "mau leitor" de Darwin. Pascoal da Conceição defende muito bem este ser provocador e culto. Talvez, para os espectadores mais afoitos, esse mau leitor de Darwin seja o representante do Mal. Na verdade ele é a força que analisa e discorda. 

Pela primeira vez em seu trabalho Tchecov não nos dá a representação da nobreza decadente, embora alguns dos personagens sejam nobres (e decadentes!). O autor se debruça sobre uma sociedade acomodada, e sobre os rígidos padrões impostos às mulheres. Dessa vez, ao que parece, os padrões são ditados pela pequena burguesia. Não importa, para as mulheres todos os tempos são iguais. Carol Brada, na sua magnífica interpretação da bem casada Mária Bitiugova, faz de sua intervenção um misto de bondade e preconceito. O ponto alto de Brada é a visita que faz a Nadiejda Fiódorovna, (uma Camila Pitanga inteiramente entregue ao teatro), tentando convencer a "desviada", que abandonou o marido por outro homem, a voltar ao rebanho da sociedade. (Uma observação: o figurino de Bitiugova , de Diogo Costa, é o responsável pela cena que enaltece a sociedade estabelecida...Ele é belo).

São tantas as situações, nesta avalanche de seres. O médico Aleksandr Samóilenko (há sempre um médico nos trabalhos de Tchecov) é uma figura vaidosa e bondosa, interpretada com a emoção requerida por estes sentimentos, aliada à rigidez com que controla seus servos Reginaldo (Rafael Matede) e Damião (Victor Galli). Embora pareça estranho, esse é um toque bem humorado no espetáculo. Além de, é claro, os momentos descontraídos de picnics e conversas de bar. Diferentes dos servos de Shakespeare, Reginaldo e Damião não dão seu recado sobre a sociedade em que vivem...


Há o sorridente Diácono Pobêdov (Freddy Álan), personagem puro que troca memoráveis questões religiosas com o nosso Von Koren, a quem chama de "judeu-alemão" (ou estarei delirando?) Há também música ao vivo, orientada pelo "Mestre de Instrumentos" (Otávio Ortega). E a excelente ideia de reunir profissionais apaixonados por teatro e construir com eles uma comunidade livre foi de Aury Porto. Esse ator interpreta o jovem e desorientado Ivan Laiévski, um nobre! A trajetória do homem egoísta ao homem consciente é acelerada por Atchmiánov (Guillherme Calzavara) um jovem apaixonado pela companheira de Ivan; por Kiríln (Sergio Slaviero) o capitão também apaixonado por Nadedja... e Von Koren! (odiado por Ivan Laiéviski). Mas estou revelando o final. Não posso deixar de acrescentar que, pela primeira vez em se tratando de Tchecov, há um espaço aberto para o futuro. Verificamos que "avançar, avançar sempre...", é o lema do autor neste "O Duelo". Trata-se de um trabalho de imaginação e que faz pensar. É bom ver bom teatro.