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quarta-feira, 26 de novembro de 2014

AMOR PERVERSO

Claudia Ohana (Victoria), Elena Rinaldi (Eva) e Regiane Alves (Amapola). Foto Pino Gomes.


IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

É um espetáculo delicado e difícil, este "Amor Perverso" (Cariño Malo), de autoria da chilena Inês Stranger.  É um sonho de menina moça e um grito poético das mulheres de Garcia Lorca!  Em algum lugar do mundo deve haver uma qualificação adequada para este tipo de teatro, mas de uma coisa podemos ter certeza: é poesia pura, desde as palavras das mulheres, até as imagens criadas pela imaginação do diretor.
O paulista Luiz Valcazaras estreia no Rio de Janeiro com este "Amor Perverso". Vindo de uma carreira de sucesso em São Paulo, sede do polêmico grupo "Os Satyros", Valcazaras dirigiu textos de Guzik e Roveri, além de seu próprio texto R.E.M, para o grupo. Em seu surpreendente trajeto, Valcazaras trouxe Berta Zemel de volta ao palco em "Anjo Duro", sobre a psicanalista Nise da Silveira. O texto também é de autoria do diretor paulista, e deu à Zemel o Prêmio APCA de Melhor Atriz.
Há uma peculiaridade neste novo trabalho de Valcazaras, "Amor Perverso": é o de trabalhar imagens de grande impacto visual, e emocional. Este processo, segundo o diretor, vem se sedimentando desde 1994, quando criou o N.I.T.E. (Núcleo de Investigação Teatral), em um trabalho que busca transformar o artista em um "contador de imagens".
Valcazaras conseguiu, das três protagonistas de "Amor Perverso", um sentimento intenso,  entregue e delicado. Repito: não se trata de uma experiência fácil este de contar imagens.  

Vamos a ele: "Amor Perverso" é o desnudamento da alma de uma mulher em três momentos de sua vida: a paixão pelo homem (uma tocante Regiane Alves (Amapola); o "grito gitano" de Claudia Ohana (Victoria), querendo romper os laços que a limitam; Helena Rinaldi (Eva), e a vontade de acertar da mulher meiga e forte.
Os nomes das personagens são apenas mencionados, não se deve inferir que tenham um significado, um símbolo, embora o espetáculo seja extremamente simbólico. Eis o desafio: a personagem de Rinaldi (Eva) tenta, com grande doçura, o sucesso de sua recusa. Eva é o oposto de sua representação bíblica.
E podemos registrar, em "Amor Perverso", quatro grandes momentos teatrais:
Primeiro, o impacto da entrada em cena da mulher (as três atrizes), acompanha pelo mundo que lhe é oferecido: os pertences da casa, e o destino traçado, levados por uma carroça, onde a luz (também do diretor), dá a dimensão da cena.
Segundo movimento: o rompimento com seu papel de fêmea (o aborto de Regiane (Amapola) em cena impressionante); terceiro movimento: o grito-canto de Ohana (difícil escolher qual o momento mais significativo da peça); e quarto, a transformação da esperança em morte do amor, quando a caixa com as cartas não lidas e não respondidas se transforma no túmulo do amor. O amor, mesmo correspondido, é sempre perverso?  
Estas são experiências de poesia e mistério. Nada é facilitado para o espectador. E nada é supérfluo. Existe, ali, o envolvimento de um querer. Uma fúria delicada. E é surpreendente como o texto de Inês Stranger se aproxima dos poetas espanhóis. As imagens que o diretor derrama sobre a cena dão ao espetáculo uma dimensão já esquecida em nosso teatro. Há um belo encadeamento, o das imagens ajudando a contar a história.   
Temos também o solo de contrabaixo de Saulo Vignoli, acentuando o clima misterioso do texto. A direção musical, e trilha original é de Alexandre Elias; figurinos de Teca Fishinski; cenário Paulo Vilela; Visagismo: Pino Gomes; direção de movimento: Kika Freire. Somando-se, temos a tradução  de Renato de Mello, captando um momento tão nosso. É bom ver a alma feminina se manifestando sem pudores. E com beleza. Aconselha-se uma ida ao teatro para ver esse "Amor Perverso".           

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

TIMON DE ATENAS

Timon (Vera Holtz), enfurecido com a insistência dos credores. (Foto Dalton Valerio)

IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)
Barbara Heliodora nos surpreende com a tradução de um tema de dupla interpretação que é Timon de Atenas, de Shakespeare. Aliás, o poeta seiscentista muitas vezes nos brinda com temas irônicos, e de dupla interpretação, como o escolhido nesta montagem. A concepção do diretor Bruce Gomlevsky (na foto do programa com expressão de artista realizado), acentua esta dupla interpretação irônica. Timon é um perdulário? Um "pródigo"? - como dizem seus freqüentadores bajuladores? - ou um irônico que quer nos mostrar (na visão de Shakespeare) como a humanidade é inviável. Ou ainda, Timon é um corruptor? Sim, porque aquela gente que o freqüenta quer ser corrompida...  o dinheiro e suas liberalidades corrompem. Sabe-se lá o que Shakespeare pensava sobre ironia e dupla interpretação, porém ele era um mestre nestes assuntos, vide O Mercador de Veneza, ou mesmo A Tempestade, ou Sonho de Uma Noite de Verão... Pensando bem, todas as peças de Shakespeare, principalmente as históricas, são alfinetadas irônicas neste mundo vão.
Sigamos Timon de Atenas. Um cavaleiro rico, que nunca soube o que é trabalhar e muito menos de onde vem o dinheiro - e que se vê, subitamente, sem eira nem beira - reclama, mais ou menos assim: "Eu, que sempre tive tudo, que nunca pedi nada a ninguém, agora que preciso, se me negam a  ajudar?" Que homem louco é este? Simplesmente um ingênuo? Timon pode morrer de ódio, ser sufocado em algo que ninguém o levou a fazer, a não ser a sua própria insensatez.

Passemos aos grandes momentos desta montagem rica e fluente. Nem é preciso falar nos cenários de Helio Eichbauer e suas passagens de tempo; ou nos excelentes figurinos de Rita Murtinho. Que ficha técnica maravilhosa! Marina Salomon na Direção de Movimentos (Vera Holtz, Timon, com alguns discretos movimentos, passa toda a interpretação de um homem). Tradução e Revisão de Barbara Heliodora; adaptação da tradução de Susan Mace e Izabel dos Reis Veloso; Direção musical e Música original de Marcelo Alonso Neves.

Devo confessar que desconhecia o trabalho de Elisa Tandela, assistente de direção e encarregada da Iluminação do espetáculo. Preparação Vocal de Letícia Carvalho. Esta concepção moderna de Timon de Atenas foi idealizada por Nicholas Hytner e Bem Power para o National Theatre de Londres. Devo dizer que o fascínio de Timon habita a cabeça de tradutores e diretores. Na Cartucherie de Vincennes houve uma montagem para a qual fui convidada, mas não pude comparecer, não tinha companhia. Quase morri de desgosto... Não sei o que está acontecendo comigo ultimamente, acho que é algo parecido com o que aconteceu a Timon.
Às vezes nos reconhecemos, nas peças de Shakespeare. Não sempre. Não importa a interpretação que os franceses - a quem também me dirijo - derem ao meu desabafo, mas posso imaginar um Shakespeare na terra de Molière. Enfim, pelas fotos do espetáculo (que não assisti), compreendi que a montagem francesa deveria ser bem moderna.
Quanto à montagem brasileira, o mais interessante é o surgimento do "homem racional", Apemantus, o  filósofo, (Tonico Pereira), dizendo claramente aos convivas eternos de Timon que despreza todos aqueles banquetes, que é um homem que "só come raízes", e mastiga, calmamente, a sua cenoura. Tonico Pereira também compõe com Timon (Vera Holtz), o episódio popularmente shakespeareano, quando junta-se às mágoas do homem injuriado, e mantém com ele a deliciosa fala do homem simples (e sábio), típico das peças de Shakespeare. Uma delícia.

Enquanto isso, o rico Timon (uma excelente Vera Holtz) queixa-se, desde sua penúria abjeta, que não nascera para ser tratado assim. Todo o elenco; a rica montagem; as músicas; tudo colabora para o acerto do espetáculo, principalmente o final, em que Timon esbraveja, de seu túmulo, maldições eternas contra os hipócritas!

No elenco, destacam-se a serva fiel, interpretada por Alice Borges; a senadora Sempronia (Lorena da Silva) e Lucullus, o senador (Paulo Giardini), ou Jaime Leibovitch, como o senador Isidoro. Entre elenco e coro são 27 atores e músicos. Impossível citá-los isoladamente. Ou talvez destacar os três cobradores ladrões? Braulio Giordano (Caphis), Luiz Felipe Lucas (Hortencius) e Betto Marque (Titus). Por que cobradores ladrões? Por que aceitariam fazer qualquer negociata por debaixo dos panos.
Não deixa de ser bisonho ver todas aquelas pessoas, com trajes atualíssimos, sofisticadíssimos, clamando pelos deuses do Olimpo e citando momentos e locais da Grécia antiga, que foram conservados por Shakespeare em sua montagem temporal. No espetáculo em cartaz no teatro Maison de France chegamos o mais próximo da Grécia olímpica quando é projetada a bela imagem do Partenon, uma homenagem à Atenas, a deusa da sabedoria.       

Sabemos que o espetáculo não se quer inatual, e o que Timon proporciona, o espetáculo da loucura é real, é verdadeiro. Faz-nos lembrar a ação do herdeiro dos Martinelli, que dilapidou a fortuna de seu pai, e acabou tirando sua mãe idosa do palacete do Morro da Viúva, para viver em um quarto e sala em Copacabana...  
Vale a pena assistir a este espetáculo que se quer grandioso.   

domingo, 9 de novembro de 2014

O INCANSÁVEL DOM QUIXOTE




IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)

Que perfeição, meus amigos, que perfeição! Se vocês ainda não conhecem a história de D. Miguel de Cervantes y Saavedra que há na praça - e acho que nunca houve outra igual com todas as Bibi Ferreiras e Paulos Autran, com todos os musicais deste mundo - que se iguale a este espetáculo que pega a essência do livro de D. Miguel. 

Estamos falando no espetáculo "O Incansável Dom Quixote", escrito, interpretado e produzido por Maksin Olivera. Esse "Olivera" dá a impressão de que ele é da terra de Dom Miguel. Mas existe coisa mais medieval do que o povo do interior do Nordeste brasileiro? Pois Olivera colocou o seu Sancho Pança refletindo e agindo com a alma nordestina.

A apresentação que ele nos faz do fidalgo "classe média" que é Dom Quixote, é da maior perfeição em gesto e fala. E, meu Deus, quando mistura o teatro popular brasileiro com as maluquices das histórias medievais européias, é uma delícia. Quem não viu, ainda pode ver, porque o saltimbanco que é Maksin pega a sua maletinha, a sua sineta e seu figurino inspirado (Leonam Thurler) e te encontra em algum teatro por aí.

Como é bom assistir alguém que nasceu com este micróbio da loucura que é o teatro! Mas uma loucura controlada, de um virtuose. E aí? Como fica D. Quixote depois de atado na cama pra deixar de maluquice? Mas naquele tempo faziam isso! - exclama o ator, lembrando-nos que no nosso tempo ainda se atam pessoas em postes.

E essa idéia "quixoteana" que nos diz que Sancho viveu a maior aventura de sua vida, rompendo por alguns dias a sua prisão/gaiola de camponês sem eira nem beira? Por mais que ele tenha sofrido, sendo a consciência pensante do herói da triste figura. A autor fala na "genial simplicidade de Sancho". Ninguém ainda tinha falado neste gênio que habita o homem do povo e suas soluções mirabolantes. E a fala final, dizendo que esta dupla é uma simbiose e uma união complementar, é pura poesia. Bravo, Maksin Olivera!

Ficha técnica: o acima referido autor (inspirado em Cervantes), ator e produtor. Produção Executiva de Juliana Marsico; Direção e Caracterização de Reynaldo Dutra; (Figurino Leonam Thurner); Cenário "Magnífica Troupe de Variedades"; Iluminação Pedro Struchiner; Fotos Nicolle Longobardi e Daniel Delmiro.

COMO É BOM VER BOM TEATRO!      

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

GERTRUDE STEIN, ALICE TOKLAS E PABLO PICASSO

Oristânio, Bruno e Faerstein em "Gertrude Stein, Alice Toklas e Pablo Picasso", de Alcides Nogueira.
Foto: Daniel Delmiro.
IDA VICENZIA
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)
(Especial)
Finalmente foi dado ver, aos retardatários, Gertrude Stein e Alice Toklas em seu amor "que se abre como uma orquídea". Dessa vez, temos Barbara Bruno em vez de Antonio Abujamra, e Pablo Picasso em vez de Helene. Mas a história corre, como um bom teatro paulista. Palavrões, ironia, citações e armadilhas. Nada falta nesta confusão pantagruélica!
Há momentos que Guiseppe Oristâneo traz Picasso para o palco; que Gertrude Stein, insaciável (e irônica), ressurge em Barbara Bruno. O brilho da inteligência não cansa, e ficamos imaginando quão loucos deviam ser aqueles encontros da dita geração maldita que se reunia na Rue des Fleurus.
Não sei se propriamente loucos, mas muito cheio de bebidas e vontades. Ai de mim, que no final da vida tenho que enfrentar esta saraivada de citações bombásticas. Não as cito: quem viver verá. O que me salva é a abertura com a música andaluz-andreiana que me faz ferver o sangue! Estamos preparados para o que der e vier. E viva España! Ah! Temos uma Alice Toklas perfeita, "a própria sombra", em Sabrina Faerstein.
A direção desta vez é de Barbara Bruno e Paulo Goulart Filho.  E a impressionante figura de Maria Bonomi (vê-la trouxe a alma do espetáculo) subindo ao palco, trabalhando com eles, fazendo cenário e figurinos. Ela poderia facilmente ser uma das freqüentadoras da Rue des Fleurus. Apaixonante figura.
Mas vamos ao espetáculo: Como faz Alcides Nogueira para submergir seu texto com alguma facilidade naquele mundo, embora aquele mundo nascente queira fugir-lhe das mãos, em idas e vindas que só o teatro pode dar.  Não é fácil captar o nascimento de uma geração de artistas que vai dar a luz a algo novo. Mas Nogueira nos inquieta. Às vezes as dores do nascimento são regidas por Picasso. Ele é o "macho", apresentando a sua fragilidade: e aí surge o que todos nós sabemos daqueles tempos: cubismo, escrita espontânea, e os caligramas.... e muito mais.
Gertrude Stein não se dilacera: ela ama. Não me refiro a seu amor por Alice Toklas, refiro-me a seu amor à vida. Para um público inteligente, é a melhor das medidas. E Apollinaire: "Des amis em toute saison/ Sans lequels je ne peux pas vivre". Só faltou a sua presença...mas ele foi muito citado.      

Ficha técnica: dois gênios (perdão) comandam a ficha técnica: Maria Bonomi em figurinos e cenário e André Abujamra na música original deste Gertrude Stein. Luz: Daniela Sanchez; Foto: Daniel Delmiro; Produção Executiva: Wagner Uchoa; Locução: Antonio Abujamra? O texto, muito inteligente, aproveita para envolver, em rapidíssimos lances, nosso tempo e o nosso país. Vamos lá, gente, reviver este passado/presente que nos trouxe o presente (nas artes).